E se suas memórias estiverem mentindo pra você?
As histórias que contamos para nós mesmos sobre o que acontece em nossa vida nem sempre são muito confiáveis.
Numa dessas tardes de domingo, estava na mesa conversando com minha família sobre algumas lembranças de família. Sabe aquele café de final de tarde que rápido entra num túnel nostálgico de lembrar o que aconteceu?
Foi numa dessas que lembramos de uma viagem que fizemos quando eu tinha por volta de 11, 12 anos. Minha mãe começou a lembrar das coisas engraçadas que aconteceram quando chegamos no hotel, a divisão dos quartos, o frio que estava fazendo, os familiares que estavam presentes e que não víamos há muito tempo. Eu lembro como se fosse hoje, o cheiro da grama e das comidas que foram servidas e da alegria daquele momento.
No meio do papo, alguém estranhou minha empolgação sobre o assunto, e puxou da memória algo que nem eu mesmo lembrava.
“Mas Beta… você não foi nessa viagem, lembra?”
Não. Eu não lembrava. Mas a minha cabeça tinha certeza que eu tava lá.
Tudo que vivemos em todos os dias que estamos aqui nesse planeta, são entendidos pelo nosso cérebro a partir dos nossos cinco sentidos. São eles que captam o visual, o cheiro, os sons, a textura, o sabor de tudo aquilo que a gente passa. É pelo ouvido que entra aquela conversa dura que temos no fim de um relacionamento. É pelos olhos que aquela careta de rejeição que escorrega do rosto daquela pessoa na reunião de trabalho. Mas, ainda que acreditemos que esses estímulos cheguem brutos em nosso entendimento, nosso cérebro ainda vai ter muito trabalho pra decifrar o que aquilo quer realmente dizer.
Nosso cérebro precisa de referências pra entender o mundo. Precisa de lembranças, de aprendizados, pra poder dar um sentido ao que chega até ele. Por isso que estamos sempre nos voltando para o passado para entender o presente e projetar o futuro. Nossas memórias não são pedaços de informação sólidos que moram no fundo do nosso inconsciente. Cada vez que lembramos de algo, ativamos uma rede gigante de informações e relações que levam em consideração uma infinidade de outras memórias. Nossas lembranças dependem de sensações, de momentos, mas também de perspectivas além das nossas. Ou você nunca passou a lembrar de um acontecimento diferente depois que um amigo contou a mesma história pra você de outro ponto de vista?
E isso não quer dizer que você lembrava de uma mentira que depois foi corrigida. Pelo contrário: nenhuma lembrança é uma verdade. Tudo o que lembramos é sempre parcial. Uma folha em branco riscada a lápis por nossos sentidos e colorido pelos nosso sentimentos. Agora, imagina se nessa caixa de lápis coloridos, só existir 2 ou 3 cores?
Sabe aquela pessoa que vê tudo sempre pelo lado negativo? Você não está muito longe dela, só não percebeu ainda.
Todos nós temos nossas histórias de apego. Ficamos travados em uma forma de contar que nossa mãe não nos amou o suficiente, que nosso pai era ausente, que nossos professores nos colocavam pra baixo, que ninguém nunca reconheceu seu talento. Esses acontecimentos podem sim ter seus fundos de verdade, mas são eles também que nos impedem de viver novas experiências no futuro.
Sabe aquele medo de entrar num relacionamento porque você tem a certeza que tem dedo podre? Que histórias você conta, de inúmeros relacionamentos que deram errado, pra poder justificar essa crença? Será que essa história já não faz seu próximo relacionamento estar fadado ao fracasso?
E aquele trabalho que você já entra com a certeza de que você não é capaz, e que toda olhada torta ou tossida fora do lugar faz você ter a plena convicção de que todos os seus colegas de escritório acham exatamente a mesma coisa que você?
Nos apegamos muito em determinadas histórias, mas as armadilhas da nossa cabeça são ainda mais profundas. Em algum momento, as lentes que usamos pra ver o mundo já estão tão turvas que só conseguimos ver em todas as nossas vivências, aquele pedacinho que prova o que a gente quer sentir. De tudo o que eu vivi no meu relacionamento, eu só lembro daquilo que mostra que o problema sou eu. De toda a minha infância, minha memória só puxa os dias que minha autoestima foi destruída. E por assim vai.
Mais uma vez, faço questão de frisar: essas histórias podem ter sim acontecido dessa forma.
Mas elas não podem ser uma sentença cabal do que acontece no futuro.
Faça um exercício: puxa aí dentro quais são as histórias que você faz um esforço enorme pra reforçar?
Eu começo.
A vida inteira, eu reconto as histórias que me fazem sentir fracassada e azarada. Eu adoro relembrar os momentos que mostram que eu sou uma pessoa que nasceu pra dar errado. Conto do momento que eu estava sendo cotada pra uma campanha de publicidade e fui trocada por alguém parecida comigo. Lembro da vez que não quiseram me chamar pra uma reunião de trabalho porque a cliente talvez não gostasse muito da minha aparência.
Essas histórias aconteceram. Mas eu conto elas como justificativa do meu destino.
E daí que eu já fiz várias outras campanhas onde eu fui muito bem tratada e elogiada? O que importa se eu sou muito bem sucedida no meu trabalho, seja como escritora, criadora de conteúdo, publicitária?
Eu adoro voltar pro lugar que eu tenho certeza de que eu sou um lixo. E ai de você se me disser que isso é coisa da minha cabeça. Eu te listo 40 situações que mostram que eu tô certa, você tá errada, nem vem.
No fim do ano passado, eu acertei de escrever meu primeiro livro.
Alguns meses depois, recebi a notícia que não ia rolar mais.
O normal seria eu me recolher, sumir das redes (como já fiz tantas vezes) e me achar a pior pessoa do mundo.
Dessa vez, eu resolvi contar outra história.
Tô escrevendo o livro mesmo assim. Mesmo achando que não sirvo pra isso. Que não tenho o que dizer. Que não escrevo bem o suficiente pra isso.
Se for assim, que seja.
Vai que dá certo?
Oi Beta,
Me deparei com esse email, e vi teu nome, e reconheci porque eu já te vi pelo instagram, fiquei um pouco confusa, porque não lembrava de ter feito inscrição pra receber teus textos, mas mesmo assim fui ler, aliás, o título da carta aberta foi gênial e casou com o momento de confusão.
E eu iniciei meio que lendo rápido, mas ai a leitura foi ficando tão boa, que eu voltei pra ler tudo denovo e com calma e atenção. Enfim, obrigada! Obrigada por esse texto e obrigada por esse texto hoje! Foi extremamente necessário pra mim ler o que li hoje. Seu texto me fez questionar algumas coisinhas em meus pensamentos e me animou. Obrigada beta.
Espero que você continue firme e forte a escrever seu livro, acreditando ou desacreditando, só vai, só escreve... E siga com paciência e cuidado consigo mesma. E já posso te dar um espóiler dele, ele vai ser lindo, babado e alegria, então... Não desiste dele não tá?!
Atenciosamente,
Júlia.
Nossa, genial! Realmente, nossas memórias nos enganam. Continue o livro, quero ler!